Olhos d’água (Fragmento)
Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo, busquei dar conta de minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de minha mãe aprendi conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias. Naquele momento, entretanto, me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor seriam os seus olhos. Eu achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de vários detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo... Da verruga que se perdia no meio da cabeleira crespa e bela... Um dia, brincando de pentear boneca, alegria que a mãe nos dava quando, deixando por uns momentos o lava-lava, o passa-passa das roupagens alheias, se tornava uma grande boneca negra para as filhas, descobrimos uma bolinha escondida bem no couro cabeludo ela. Pensamos que fosse carrapato. A mãe cochilava e uma de minhas irmãs aflita, querendo livrar a boneca-mãe daquele padecer, puxou rápido o bichinho. A mãe e nós rimos e rimos e rimos de nosso engano. A mãe riu tanto das lágrimas escorrerem. Mas, de que cor eram os olhos dela?
Eu me lembrava também de algumas histórias da infância de minha mãe. Ela havia nascido em um lugar perdido no interior de Minas. Ali, as crianças andavam nuas até bem grandinhas. As meninas, assim que os seios começavam a brotar, ganhavam roupas antes dos meninos. Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confundiam-se com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamente nos dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas. Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira. Felizes colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso barraco. Aquelas flores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só ria, de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe? Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía.
Conceição Evaristo (Olhos d’água, p. 15-19)
Em: "Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome." Os termos destacados exercem função de:
Adjunto adverbial de tempo, oração subordinada adverbial final.
Adjunto adverbial de lugar, oração subordinada adverbial modal.
Adjunto adverbial de tempo, oração subordinada adverbial modal.
Adjunto adverbial de tempo, oração subordinada adverbial consecutiva.
"E diante dela fazíamos reverências à Senhora".
O sinal indicativo de crase foi empregado, seguindo a mesma regra da oração, acima, em:
Apesar do engarrafamento, o estagiário compareceu à entrevista.
O novo orçamento destina-se àquela empresa paulista.
A pesquisa ofereceu maior suporte à cidade menos privilegiada.
Toda a exposição soube, com maestria, unir a atividade à criatividade
Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confundiam-se com as de minha própria infância.
Quanto ao uso do sinal indicativo de crase e à acentuação gráfica, assinale a alternativa correta:
Antes de palavra feminina / todas as palavras acentuadas são paroxítonas terminadas em ditongo decrescente.
O uso da crase está incorreto / todas as palavras acentuadas são paroxítonas terminadas em ditongo decrescente.
Antes de locução adverbial feminina / todas as palavras acentuadas são paroxítonas terminadas em ditongo crescente.
Antes de locução adnominal feminina / todas as palavras acentuadas são paroxítonas terminadas em ditongo decrescente.
"E era justamente nos dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas."
A palavra destacada, em relação ao contexto, tem como significado:
inaudito.
escasso.
raro.
sóbrio.
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