Viver a vida ou gravá-la?
Marcelo Gleiser
[1º§]Um artigo no jornal New York Times explora a onda explosiva do uso de celulares para gravar eventos, dos mais triviais aos mais significativos. Todo mundo quer ser a estrela da própria vida. Alguns vídeos postados no YouTube tornam-se "virais" (superpopulares) em questões de horas, como o do jornalista Scott Welsh que sacou seu celular em meio a uma pane no seu voo para gravar o caos e o drama a bordo. Conseguiu até sorrir com máscara de oxigênio no rosto. (O avião pousou sem problemas.) Se a morte parece inevitável, por que não registrar seus últimos momentos?
[2º§]Por um lado, isso faz sentido; nossa vida é importante, e queremos ser vistos, dividir nossas experiências, ser apreciados. Por outro, porém, essa compulsão de gravar tudo acaba provocando um distanciamento do momento vivido. Na ânsia de registrar nossas vidas, acabamos vivendo menos, deixando de nos engajar com o que ocorre.
[3º§]Algo ocorreu com nossa psique entre o diário que trancávamos na gaveta e a câmera de vídeo. Os celulares apenas agravaram essa tendência. Eis um exemplo. Em junho de 2001, acompanhei um grupo de ex-alunos da minha universidade num cruzeiro para ver um eclipse total do Sol na costa de Madagascar. No navio, havia um grupo de "caçadores de eclipse", pessoas que vão pelo mundo atrás de eclipses do Sol, aliando turismo à ciência. Quando presenciamos um eclipse, dá para entender por quê: é uma experiência primal, que nos remete a um estado emocional de maravilhamento com o mundo natural, ligando-nos a algo maior do que somos. Para minha surpresa, quando o momento estava para chegar, o convés do navio foi invadido por tripés e câmeras: entre assistir ao evento durante os poucos minutos em que a Lua oculta o Sol e o dia se torna mágico, as pessoas optaram por ver tudo por detrás duma lente.
[4º§]Fiquei chocado, especialmente porque profissionais a bordo tirariam fotos e fariam vídeos muito melhores do que os amadores. Mas as pessoas queriam fazer o seu vídeo, tirar as suas fotos. Fui a dois outros eclipses e foi a mesma coisa. As pessoas optaram por viver a experiência por trás duma máquina, em vez de visceralmente.
[5º§]O que os celulares e a mídia social fizeram foi facilitar enormemente o processo de registro e de distribuição das imagens. O alcance é muito maior e a gratificação é quantitativa (o número de "curtidas" que uma foto ou vídeo recebe).
[6º§]Claro, tem um lado disso que é ótimo. Celebramos os momentos significativos das nossas vidas e queremos dividi-los com as pessoas próximas. Mas a maioria do que é registrado não é significativo ou dividido com pessoas próximas. Deixamos de participar do momento, porque gravá-lo para os outros é mais importante (...).
[7º§]Nada substitui o contato direto, o olho no olho, a conversa direta. Os aparelhos são geniais, claro. Mas não devem definir como vivemos nossas vidas ou como vivenciamos momentos significativos; apenas complementá-los.
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 05/10/2014. Texto Adaptado.
Observe o conceito gramatical de conjunções alternativas:
Conjunções alternativas – como o nome indica, enlaçam as unidades coordenadas matizando-as de um valor alternativo, quer para exprimir a incompatibilidade dos conceitos envolvidos, quer para exprimir a equivalência deles. A conjunção alternativa por excelência é ou, sozinha ou duplicada
(...).
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa; Atualizada pelo Novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009: p. 321.
A partir dessa noção gramatical, a opção que explica o valor semântico da conjunção ‘ou’ no título “Viver a vida ou gravá-la” é
O domínio do trivial
Hoje, cada vez mais, mesmo quando parecemos discordar, pensamos todos as mesmas trivialidades.
Contardo Calligaris
[1º§]Aos vinte anos, leitor de Gramsci¹, eu entendia que o poder das classes dominantes se exercia de duas maneiras. Havia a exploração econômica, com repressão eventualmente brutal das reivindicações dos trabalhadores (sem contar as guerras imperialistas). E havia a outra face do domínio: o controle das ideias e das mentes, oculto e insidioso. Esse era o terreno de luta dos intelectuais: podíamos colaborar com a classe dominante ou, então, fazer o quê? Sermos porta-vozes de uma nova classe?
[2º§]Não éramos totalmente ingênuos. Reconhecíamos os horrores do dito "socialismo real" e percebíamos que ele substituíra uma classe dominante por outra. A ditadura do proletariado não tinha por que ser melhor do que a ditadura da burguesia; talvez, aliás, ela fosse pior. Nosso sonho era outro: uma sociedade sem classes.
[3º§]Pois bem, um espectador apressado poderia pensar que, enfim, realizamos a famosa sociedade sem classes – ao menos em parte. Claro, desigualdades e exploração continuam; no entanto, é difícil distinguir a cultura da classe dominante das outras que lhe seriam opostas, porque, no fundo, mesmo quando parecemos discordar, pensamos todos de forma igual.
[4º§]Acabo de ler "L'Egemonia Sottoculturale", de Massimiliano Panarari (A hegemonia da subcultura, editora Einaudi, 2010). O autor, um intelectual de minha geração, faz uma crítica hilária da "subcultura da fofoca", que seria, segundo ele, a cultura dominante na Itália de hoje. (...) Mas o que Panarari diz não se aplica só ao caso da Itália. Mundo afora, é cada vez mais difícil dizer algo que não faça parte de um senso comum que é feito de referências, ideias e, sobretudo, maneiras de pensar compartilhadas graças ao uso generalizado da mesma mídia.
[5º§]Nesse quadro, pensar criticamente é árduo. Quem deseja convencer seus leitores ou espectadores de que ele pensa fora da trivialidade dominante tende a parecer-se com aquelas crianças que, de vez em quando, gritam "xixi e cocô" e, com isso, gabamse de ter quebrado um grande tabu.
[6º§]Nesse sentido, nos EUA, são cada vez mais populares radialistas, apresentadores e jornalistas supostamente "conservadores", que devem seu sucesso a uma vulgaridade e a uma truculência que parecem satisfazer a espera de todos por um pensamento novo, diferente. (...) Sua "ousadia" é tão inovadora quanto a das crianças do "xixi e cocô"
[7º§]No Brasil, o debate eleitoral em curso poderia também servir para mostrar que nosso senso comum compartilhado é, no caso, uma espécie de razoabilidade, resignada a evitar temas excessivamente conflitivos (...) e a aceitar alianças duvidosas e supostamente "necessárias".
[8º§]Como chegamos a essa perda de contraste na vida pública e cultural?
[9º§]Segundo Panarari, a burguesia ganhou a luta pela hegemonia jogando a carta do prazer: "Na década do hedonismo², todos se convenceram, de repente, de que estava na hora de divertir-se. Palavra de ordem: "Queremos folgar" e, por favor, evite-se empestar a existência, de qualquer maneira que seja, com política, cultura, economia e todas essas ‘coisas’ assimiláveis a preocupações e aborrecimentos". Conclusão: a subcultura hedonista da fofoca é o novo ópio do povo.
[10º§]Concordo (um pouco) com essa visão apocalíptica da cultura dominante. Mas discordo da ideia de que a subcultura da fofoca seja a invenção vitoriosa de uma classe específica. Ela é, em meu ver, uma consequência dos nossos tempos, pela razão que segue. Quando a mídia é de massa, não há mais diferença entre manipuladores e manipulados, pois os próprios manipuladores, expostos à mídia, são manipulados por suas produções. Ou seja, progressivamente, todo o mundo pensa as mesmas trivialidades.
[11º§]É o feitiço que enfeitiça o feiticeiro.
Fonte:Folha de São Paulo, 19/08/2010. Texto adaptado.
Vocabulário de apoio
1- Gramsci: Antonio Gramsci (Ales, 22 de janeiro de 1891 — Roma, 27 de abril de 1937) filósofo marxista, jornalista, crítico literário e político italiano. Escreveu sobre teoria política, sociologia, antropologia e linguística.
2- Hedonismo: teoria ou doutrina filosófico-moral que afirma ser o prazer o supremo bem da vida humana.
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