TEXTO 1 - O oceano recebe todo rio
A batida ritual ainda toca em mim. Foi na festa da primavera que ouvi a canção pela primeira vez, na escola das meninas, que fica na Nova Zelândia, onde estamos aportados. Nela, os versos sufis (uma tradição de iluminação que leva adiante a verdade essencial através do tempo) eram feitos apenas para mim. A água é paciente, o regato segue. Já em casa, o verso escapa como um sussurro da minha filha caçula: “The ocean refuses no river, no river” (o oceano não recusa nenhum rio, em tradução livre). No chão de tábuas largas, de um para outro ponto do crochê, minha menina tece. Tece presentes, que é seu jeito de estar perto da família aqui de longe. A água em mim devagar gira, com esforço no início, até que o vórtice roda por si. A epifania vem fluida em forma de versos: “O oceano não recusa o Rio Doce, rio algum / Não recusa as águas radioativas de Fukushima / O oceano não recusa nem a Vale, nem o Rio Doce, rio algum. A água une e dissolve, é a sua natureza. Não há esta e aquela água, só água. Um par de gotas mal se encontra e já são uma só, nem se viu e são o oceano. O oceano recebe terroristas / Recebe fabricantes de armas / Refugiados / O oceano recebe exércitos, todo rio”. A água tem uma qualidade intransitiva. Chove! Neva! Nada mais. Sem julgamento, cor ou gênero, a água é. Boa parte de nós é água e somos também intransitivos. Existimos antes de assumir qualidades, de sermos isso ou aquilo. A existência em si carrega todo o valor que um ser vivo precisa para ser honrado. Cada um é o veículo de uma história, um dom, um caminhar. Os rótulos diminuem as pessoas, a vida, são muros, condenações. Muros separam gotas, impedem oceanos. Quando reduzo alguém a um rótulo, não honro a água que nos une. Sem respeito não se vai a lugar algum, não há mesmo por que seguir. Muros formam barragens. A água quer ser rio mesmo que seja de lama, mesmo que seja radioativa, quer ir para o mar, quer ser um só. Rótulos e muros isolam, fortalecem o fundamentalismo. A infantilidade do radical ganha fundamento no confronto. Quando isolo alguém em um rótulo, o amarro ao outro radical, o único par que lhe resta. Na oposição aos muros, radicais fantasiam-se de mártires. Como elefantes na savana, nos cobrimos de lama para suportar o sol quente. Assim faz a manada. De novo, como paquidermes não esquecemos e a culpa nos consome. Uns definham, outros escolhem a culpa fácil e reducionista no outro. Optam pelo conforto feio das respostas fáceis, dos dedos em riste. Fingimos dormir para suportar a vergonha de não nos lavarmos. Não se acorda quem finge dormir. O oceano, entretanto, recebe todo rio / Mesmo morto o rio é recebido / Com a lama tóxica e a radiação morre o mar / Podemos tingir o oceano da consciência ou honrar os elementos. A água é lenta, quer ser plácida, quando, entretanto, de pingo em gota a onda levanta, tem a força de dilúvio. Que a água lave e nos faça um. A esperança sobe com a fragilidade e o fascínio de uma bolha de sabão.
Texto de LUCAS TAUIL DE FREITAS disponível em http://vidasimples.uol.com.br/noticias/pensar/o-oceanorecebe-todo-rio.phtml#.V1dJy773gUo acesso 07 de junho de 2016.
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